Prof. Dr. Pe. Rogério Jolins Martins1
A bioética surgiu em 1971 com a obra Bioethics: bridge to the future2 (Bioética: ponte para o futuro) do bioquímico e professor de oncologia Van Rensselaer Potter, da Escola Médica da Universidade de Wisconsin, com o objetivo de discutir os limites do conhecimento técnico-científico gerado nas décadas anteriores, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. Propunha-se estabelecer “pontes” entre os saberes biológicos, médicos, jurídicos e humanos em nome da necessária sobrevivência na terra. As demandas sentidas por Potter já tinham sido percebidas por Fritz Jahr3 (1895-1953), quando em 1927, dando conta do cansaço da razão moderna, propôs falar da necessidade de uma narrativa que contemplasse não estritamente o antropos, mas todas as formas de vida existentes no planeta, também os animais, as plantas e a natureza como um todo. Essa nova narrativa, na sua origem, buscou interpretar conflitos surgidos do cotidiano hospitalar e as situações que emergiram no campo técnico-científico, sendo desse modo designada por muitos como uma ética aplicada. Dentre os muitos dilemas que se tornaram públicos e levaram ao debate, em contexto internacional, em 1962, está a publicação de um artigo de Shana Alexander, na revista Life Magazine, intitulado “Eles decidem quem vive e quem morre”4, referente à responsabilidade médica a que cabia decidir os pacientes que teriam acesso às poucas máquinas para diálise e as muitas demandas de pessoas com insuficiência renal. Criou-se com isso um Comitê de Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle com o objetivo de interferir na alocação de recursos de saúde e definir critérios de seleção de pacientes para tratamento, dada a limitação dos recursos disponíveis.
Esse Comitê formado por especialistas em algumas áreas do conhecimento e representantes da sociedade organizada assumiu desde então a responsabilidade pelas decisões que deveriam ser de domínio público. Dessa forma, a decisão pela vida ou pela morte não se restringiria mais somente aos médicos, mas ao domínio público, marcando assim o rompimento com a tradicional ética médica, caracterizada até então como muito paternalista. Muitos outros casos que estavam ocorrendo foram trazidos para o debate dessa nova concepção teórico-metodológica. Por exemplo, aconteceu, em 03 de dezembro de 1967, quando o médico Dr. Christian Barnard realizou o primeiro transplante de coração, na África do Sul, desencadeando, sob o impacto da nova descoberta, a necessidade de se redefinir o conceito de morte de “parada cardiorrespiratória” para “morte cerebral”.
Essa nova definição para “morte” entrou em vigor em 05 de agosto de 1968, com a publicação de “A definition of irreversible coma: report of the ad hoc Committee at Harvard Medical School to examine the definition of brain death”5. Merece citar ainda o Relatório Belmont6, publicado em 1978, como resposta do governo estadunidense que, mesmo após a publicação das sentenças do Tribunal de Nuremberg, em 1947, para julgar os experimentos nos campos de concentração nazistas, continuou fazendo experimentos em seres humanos de forma eticamente reprovável, como no caso da sífilis e outros, que causaram um estado de comoção da comunidade internacional, por terem tomado como cobaias indivíduos vulnerados. Esses feitos levaram os EUA a instaurar uma comissão de proteção à pessoa, a qual identificou os princípios do respeito à pessoa, da beneficência e da justiça que deveriam conduzir os experimentos realizados de ora em diante. Esses feitos e novas descobertas no campo técnico-científico despertaram em algumas nações e na comunidade científica a necessidade de formar sistemas de avaliação ética para pesquisas, que se serviram dos princípios do Relatório de Belmont como base, e se disseminaram rapidamente para o mundo inteiro com congressos e publicações realizadas pelas mais diversas áreas do saber, além de cursos em nível de pós-graduação lato e estrito sensu, com o objetivo de contribuir nas decisões a serem tomadas.
A análise para as tomadas de decisões não tem por objetivo inibir as novas descobertas, mas iluminar para que as aquelas sejam mais assertivas. A recepção desse marco teórico no Brasil se deu efetivamente com a realização do VI Congresso Mundial de Bioética, em 2002, em Brasília, quando abordou o tema “Bioética, poder e injustiça”. O Congresso trouxe para o debate questões fora do âmbito clínico biomédico de tradição estadunidense, implicando que a bioética não deveria tratar de problemas importados de outros povos, mas que deveria refletir sobre eles de forma situada. A partir daqui o debate em bioética se ampliou e retomou o seu propósito originário, o qual seria estabelecer uma ponte entre as mais diversas formas de vida, precisando considerar também os fatores sociais e ambientais. Um acontecimento decisivo para a direção da bioética nesse sentido foi a publicação da “Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos”, da UNESCO, em 20057. Esse instrumento começou a tratar a bioética não como única, mas uma narrativa com diversas tendências e realidades nela contempladas. Os próprios princípios do Relatório Belmont, logo após sua publicação, sofreram alteração pela necessidade de contemplar outros referenciais como a não maleficência, a alteridade, o cuidado, a libertação, a solidariedade, a responsabilidade, etc. que dessem conta das realidades em que a análise bioética era feita. Os dilemas tratados de forma bioética precisam considerar a complexidade das demandas à luz da pluralidade dos conhecimentos, de gêneros, de políticas no que se refere a leis e recursos, das sociedades, de valores morais, etc.
O debate quando abrange questões relevantes requer que todos os envolvidos tenham disposição e competência para a discussão. É assim que a bioética neste ano de 2020 dá sua contribuição para o momento grave que a humanidade toda vive, apreensiva com a pandemia provocada pela disseminação do vírus covid-19. Mesmo com o rápido contágio e a alta letalidade nas sociedades, a bioética questiona as mais diversas reações frente à gravidade da pandemia por parte de governos, instituições e segmentos sociais. Essas reações diversas pouco representam a multidisciplinaridade, pressuposto básico da bioética, uma vez que a relevância da pandemia requer que alguns referenciais tais como a não maleficência, a responsabilidade, o respeito à pessoa, a beneficência, a justiça, o cuidado, a solidariedade e outros deveriam ser ponderados, quando na verdade estão sendo ignorados.
A forma como o governo brasileiro, em específico, tem tratado esta realidade é tão séria, a começar pelo seu desprezo à vida, às relações, ao contributo das ciências e das instituições de maior representação da sociedade civil. Muito tumulto se gerou com argumentos falaciosos que buscaram confundir a opinião pública sobre o status da vida humana na relação com economia, politizando uma situação já demasiadamente complexa. Em meio a tal conflito, a bioética de tendência personalista desfaz esse falso dilema ao lembrar que a vida está intrinsecamente relacionada à economia, mas tem precedência a ela e não o inverso. A manchete publicada por Shana Alexander, “Eles decidem quem vive e quem morre”, passou a ter atualidade aqui sob novo tempo, novo contexto, no que tange à administração das vidas. É nesse contexto que se deu o importante posicionamento bioético com O pacto pela vida e pelo Brasil8, publicado no dia 07 de abril de 2020, ainda no início da pandemia, que buscou despertar a consciência ética de todos os cidadãos desta Nação para a necessária preservação da vida e da dignidade de todos. Esse instrumento recorda as responsabilidades dos agentes do Estado brasileiro e de cada indivíduo para o compromisso, sobretudo com os mais desprotegidos: “ninguém seja deixado para trás”, pois, como diz o Papa Francisco, “ninguém pode ser saudável em um mundo doente”9.
A bioética comemora seus cinquenta anos com várias contribuições dadas às sociedades do seu tempo, e se torna imprescindível quando se observa grande intolerância por parte de pessoas mais preocupadas com a estética, o poder e com a instrumentalização dos valores, desdém às causas sociais e humanas, e mesclados com um fundamentalismo que dá pouco espaço à razão. Em meio às tantas situações do cotidiano que se apresentam aos indivíduos e à coletividade que requer uma análise bioética, para medidas mais assertivas, recobra-se aqui outro caso recente de comoção nacional da gravidez precoce de uma garota de dez anos estuprada pelo tio no Estado do Espírito Santo. Após esse caso ser amplamente explorado pela grande imprensa, começaram a aparecer os muitos outros que são praticados no cotidiano, e não evidenciados pelas famílias, pelos poderes públicos, pela imprensa, etc. Nessa época a Igreja Católica, servindo-se do Magistério de São João Paulo II, com a Carta Encíclica Evangelium Vitae, pronunciou que “causa horror só o pensar que haja crianças que não poderão jamais ver a luz, vítimas do aborto”.
A discussão bioética continua. Ela está presente nas implicâncias que envolvem as vacinas para imunizar as pessoas da covid-19 e em seus desdobramentos tais como: a concorrência entre as indústrias farmacêuticas e o acesso a essas vacinas por parte das nações pobres e endividadas. Para agravar a situação é constatado que a covid-19 tem seus efeitos mais nefastos entre os mais pobres, sem garantias de proteção. A bioética analisa essas e aquelas questões que surgirão no pós-pandemia. Sabe-se que o valor da vida humana deve ser anteposto a todas as outras necessidades, não de modo separado, mas como um todo integrado. A bioética é fruto do seu tempo; é laica e, portanto, secular. Ela está para lançar luz mediante discernimentos necessários, cabendo para isso o difícil exercício da escuta e suas ponderações. Em meio às tantas discussões que lhe são pertinentes, é ainda comum haver disputas, lobbys e interesses escusos que atrapalham por vezes a tomada de atitude mais adequada. Em todo caso, é preciso que os interlocutores da discussão não fiquem calados. Exemplo de uma dessas vozes foi a manifestação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) no caso da criança violentada sexualmente citada acima: “Lamentável presenciar aqueles que representam a Lei e o Estado, com a missão de defender a vida, decidirem pela morte de uma criança de apenas cinco meses, cuja mãe é uma menina de dez anos. Dois crimes hediondos. A violência sexual é terrível, mas a violência do aborto não se explica…”10. Em meio às situações micro e macro das sociedades, a bioética dá sua contribuição sem imposições ou desejo de obter a verdade.
1 Presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte. Professor contratado no departamento de Filosofia da PUC Minas. Membro do Comitê de Bioética da Arquidiocese de Belo Horizonte.
2 POTTER, V.R. Bioethics, bridge to the future. Englewwod Cliffs, N.J.: Prentice-Hall; 1971.
3 JAHR, F. Bio-Ethic: eine umschau über die ethischen. Beziehungen des menschen zu tier und
pflanze. Kosmos. Handweiser für Naturfreunde. 1927;24(1):2-4.
4 ALEXANDER, Shana. They Decide Who Lives, Who Dies. LIFE magazine, November 1962. Disponível em: http://www.nephjc.com/news/godpanel. Acesso em 23 de setembro de 2020.
5 BARNARD, Christiaan. A definition of irreversible coma. Report of the Ad Hoc Committee of the Harvard Medical School to examine the definition of brain death. JAMA. 1968; 205:337–340. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s12028-018-0579-8?shared-article-renderer. Acesso em 23 de setembro de 2020.
6 THE BELMONT Report. Ethical Guidelines for the Protection of Human Subjects. Washington: DHEW Publications (OS) 78-0012, 1978. Disponível em: https://www.hhs.gov/ohrp/regulations-and-policy/belmont-report/read-the-belmont-report/index.html. Acesso em 23 de setembro de 2020.
7 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração universal sobre
bioética e direitos humanos. [Internet]. Paris: Unesco; 2005. Disponível em: https://www.ufrgs.br/bioetica/undh.htm. Acesso em 23 de setembro de 2020.
8 CNBB. O pacto pela vida e pelo Brasil. 07 de abril de 2020. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/no-dia-mundial-da-saude-cnbb-assina-pacto-pela-vida-e-pelo-brasil/. Acesso em 23 de setembro de 2020.
9 PAPA FRANCISCO. CARTA do Papa Francisco ao presidente da Colômbia por ocasião do dia mundial do meio ambiente. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2020/documents/papa-francesco_20200605_lettera-giornata-ambiente.html. Acesso em 23 de setembro de 2020.
10 CNBB. Pela vidam contra o aborto. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/posicao-da-cnbb-em-defesa-da-vida-humana-e-contra-o-aborto/. Acesso em 23 de setembro de 2020.